Governo tosco

Foi com surpresa que li hoje na lista Jornalistas da Web essa mensagem enviada pelo jornalista José Roitberg:

Lembra-se de um dos argumentos da Campanha do NÃO no plebiscito: não se pode permitir ao Estado cassar direitos – primeiro vão cassar o direito de possuir armas e depois vão cassar outros. Este talvez tenha sido o argumento que deu a vitória esmagadora do NÃO.

Mal passou um mês e o governo traz de volta um projeto muito pior, violador dos direitos mais fundamentais, levando o Brasil ao mesmo status da China, Arábia Saudita, Tunísia, Cuba e outros países, pretendendo criar cadastro obirgatório de todos os usuários de internet e um arquivo, para ser usado pela justiça, com TODO O CONTEÊDO DE TODOS OS EMAILS enviados por 10 anos! Isso é algo inadmissível e só praticado em regimes anti-democráticos! Como quase todos os projetos de lei, passa desapercebido, acaba sendo aprovado por meia-dúzia de parlamentares que estiverem na sessão e não se manifestarem e este não vai ser objeto de plebiscito, pois se fosse, o NÃO seria de 100%.

Afirmo que é o governo que apresenta o projeto, porque ele vem através de um de seus principais senadores, ninguém menos que o senhor Delcídio Amaral (PT-MS) – CPMI dos Correios, e relatado com parecer favorável, pelo desqualificado envolvido no escândalo do financiamento de campanhas o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), curiosamente acusado na mesma CPMI. A dicussão JÁ FOI FEITA nesta semana (dia 17) numa daquelas “audiências públicas” que são publicadas somente depois de terem ocorrido, para ninguém saber ou ninguém ir mesmo, como se a população interessada fosse se deslocar para Brasília para participar de uma reunião.

A denúncia arrepiante veio através de uma matéria pasteurizada da Folha de São Paulo enfiada no Caderno de Informática, como se fosse uma notícia técnica e não político-social. Você vai ler a matéria, até porque usa emails e pode passar a ter “registro, ficha e arquivo, quiça porte-de-computador”, como se criminoso fosse. Sei lá o que cada um manda pela web, mas certamente muita coisa pessoal não pode ficar em poder do Estado por 10 anos ou por um dia sequer, baseado em lei, pois isso dá poder demais não a esse governo específicamente, mas a todos os outros que virão. O pior é que na matéria do jornal, todos os envolvidos são favoráveis e não há ponto de vista contrário.

É de grande preocupação que esse tema esteja FORA do noticiário diário das atividades do Senado e que a Folha não tenha publicado o número do projeto de lei PLS 279/03 permitindo que as pessoas acompanhem de perto o que está acontecendo. Agora, por favor note: esse projeto é de 2003, portanto, apresentado no ínicio do atual mandato. O projeto, com menos de uma página, já está na pasta de legislação no FILES de nosso grupo. (Botei uma cópia aqui)

Vou colocar uma situação semelhante para você ter certeza da absurda ilegalidade desse projeto de lei. Imagine se o governo tivesse autorização legal para tirar xerox e arquivar cada correspondência que trafega pelos correios, tabulando remetentes e destinatários? Precisa falar mais alguma coisa? Quem sabe todos os telefonemas gravados digitalmente? Por que não?

Além das indagações do Roitberg vale a pena prestar a atenção no seguinte trecho da matéria da FSP:

Para o chefe do Serviço de Perícias em Informática do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, Paulo Quintiliano, a ausência de um cadastro de usuários atrapalha as investigações.

Apesar de reconhecer que a maioria dos crimes da internet é praticada utilizando endereços eletrônicos de provedores estrangeiros, fora do alcance da legislação brasileira, ele defendeu a criação do cadastro e a manutenção das informações sobre as correspondências por cinco anos.

“Nós temos que fazer a nossa parte”, disse Quintiliano ao comentar que uma legislação brasileira sobre o assunto pode motivar outros países a fazerem o mesmo.

Oras, se já se reconhece que a maior parte das fraudes é feito com emails de servidores externos, fora do alcance da legislação brasileira (o que mostra que bandido pode ser desonesto, mas não é burro…), para que diabos se vai armazenar os emails dos cidadãos? Big Brother pouco é bobagem!

Assim sendo cavalheiros, resta-nos duas alternativas: protestar contra uma lei absurda dessas, que coloca em risco a privacidade do cidadão, e ir se acostumando a usar criptografia. Aliás, nessas horas é mais do que recomendável ler o clássico artigo Por que você precisa do PGP?, escrito por Phil Zimmermann, o criador do PGP.

Update: pois é como diz o ditado “Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”… Eu me deixei levar pela indignação do Roitberg e deixei passar o artigo 3º do projeto de lei, que diz que “É garantido o sigilo das comunicações realizadas por intermédio dos serviços de correio eletrônico, em conformidade com a Constituição Federal.”. Ou seja: não serão armazenadas as mensagens, tão somente os cabeçalhos delas. De qualquer maneira, se não temos um leão aí temos um tigre, visto que continua havendo:

1) monitoramento em cima de mensagens trocadas, de forma que o Estado tem informações de com quem você andou trocando emails. Pode não parecer grande coisa, mas isso equivale ao Correio ficar registrando cada carta que tu envia e recebe. Mas, de qualquer maneira, como a Thiane lembrou os provedores já fazem esse controle, de forma que essa lei parece mais uma medida que visa proteger os provedores de ações contra elas por quebra de privacidade; e

2) o cadastramento dos usuários da rede.

Mas o que mais irrita nesse projeto de lei é que ele é totalmente inócuo. Cria-se uma burocracia que, no fim das contas, não vai servir para nada. Por quê? Ora, porque email não é algo preso geograficamente. Pode-se muito bem criar uma conta no Hotmail e enviar mensagens falsas a partir dali. Pode-se criar uma conta no GMail. Pode-se assinar um serviço de email gratuíto na Rússia. Quem é mal intencionado vai arranjar facilmente uma alternativa para fazer das suas. A solução real do problema não se dá pelo controle do email, mas sim pela recriação do protocolo, que é cheio de falhas (a maior delas é a possibilidade de enviar um email sem precisar de uma senha para o usuário em questão). Sim tais problemas do email podem ser resolvidos de forma técnica, sem precisar ficar vigiando o cidadão através de contornos legais. Aliás, fico me perguntando como vai ser a vida dos donos de ciber-cafés ou de fornecedores de hotspots wi-fi, principalmente os de aeroportos e outros locais com grande tráfego de turistas…

E enquanto estava escrevendo esse mea culpa por não ter lido com calma o projeto de lei acabei visitando o site da Abranet, onde dei de cara com o acordo entre os provedores de acesso e o Ministério Público, acordo esse visando combater “pornografia infantil, crime de racismo e outras formas de discriminação veiculados e instrumentalizados pela Internet”. Está ali, na cláusula segunda, que trata sobre as obrigações dos provedores de acesso, que os provedores devem “preservar e armazenar, no período mínimo de 6 (seis) meses ou prazo superior que venha a ser estabelecido pela legislação, o registro de logs de acesso discado e, quando possível, também os IPs originários dos usuários dos serviços de web pages, salas de bate-papo, fotologs, fóruns de discussão on-line e outros” (alinea h) e “exigir que os novos usuários do serviço de acesso informem o número de algum documento validável de identificação, como por exemplo o número do RG ou do CPF” (na alinea l).

Ou seja: a nossa velha herança colonial de controle onde o bom paga pelo pecador já está em ação.

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